(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 06/06/2020)
Em Portugal, nação valente e imortal, morre-se clandestinamente. O Presidente e o primeiro-ministro andam por aí em concertos, almoços e praias como se nada se tivesse passado, no torvelinho de regras de desconfinamento que obedecem a conveniências económicas e a contraditórias indicações da nova autoridade sobre as nossas vidas, a DGS. Posso ir ao Campo Pequeno, não posso ir à praia nem ao ginásio. Para as vítimas de covid, nem uma palavra pública e sonante.
Nem um ramo de flores. Como sempre, envergonhado, horrorizado pela sua condição de pobreza ou de doença, ou das duas, o país fez de conta que nada se tinha passado. Há enterros de covid clandestinos, morreu de quê, ninguém sabe, e pessoas que estiveram doentes e fingem que nunca estiveram doentes. Psicologicamente, os danos permanecem invisíveis e confinados, dentro das famílias. O atavismo faz de nós sobreviventes medrosos e clandestinos. Ninguém conhece ninguém que tenha morrido de covid, não vá dar-se o caso de sermos confundidos com putativos portadores do vírus. Teve uma pneumonia, não era covid, era outra coisa. Em Portugal, tudo é sempre outra coisa.
Ao contrário de países onde os mortos tiveram um rosto e um nome, aqui tornaram-se o que só acontece aos outros. Uma psicóloga veio dizer que era melhor assim, para não traumatizar. Os ricos têm horror de dizer que apanharam, exceto se tiver sido “na neve”, chique, e os pobres têm horror de perder qualquer coisinha. Incluindo o emprego ou o subsídio. Quanto aos trabalhadores da saúde, não sabemos quem teve e não teve. Nem quantos, nem onde, muito menos porquê.
Há uma razão atávica para isto, classista e estratificada na consciência coletiva, que aprecia a clandestinidade como um serviço público, assim tendo sobrevivido ao apagão da História secular e a uma ditadura, e uma razão turística para isto. Quanto menos se souber sobre o covid em Portugal, melhor. Por mais que este período aconselhasse recolhimento intelectual e pensativo sobre o futuro, sobre o clima, o ambiente, o modelo, a infraestrutura, o uso dos fundos europeus, sobre a educação e a saúde públicas, a agricultura intensiva e os usos e abusos da mão de obra imigrante, sobre as terras, as águas e o ar, sobre os meios de transporte, o que vai acontecer é o que costuma acontecer. Lisboa como a grande estalajadeira da Europa e do mundo, e Portugal como lar de terceira idade para pensionistas ricos.
O Presidente veio anunciar uma “boa notícia” lá para agosto, quando estivermos entretidos na fila do semáforo para a praia. Champions, um campeonato de futebol, pode vir cá parar. Estamos salvos. O país da Web Summit e das magnas reuniões e cimeiras, do turismo religioso e laico, o país dos estádios e recintos, marcha em frente com glória. Venham os turistas, infetados ou não porque o aeroporto vai abrir sem restrições, venham todos, somos o país covid free. Os mortos não falam. Há para aí uns surtos, em regiões sem interesse para o turismo, nos subúrbios de Lisboa e nos meios de operários e imigrantes. Estamos salvos.
A qualidade do ar em Lisboa, cidade verde, não esqueçamos, que nunca foi boa conforme atestam os medidores mundiais, em breve vai voltar a ser péssima e altamente poluída porque os carros regressam em força, e as horas de ponta também. Se pensam que meia dúzia de pistas de bicicletas vão mudar isto, pensem duas vezes. Com o desespero acrescido da paragem forçada, vamos ter o abandono de todas as regras e o salve-se quem puder. Mais alojamento local, mais barato, mais turismo, mais barato, mais voos, mais carros, mais poluição. As lojas grandes não podem abrir, dentro dos aviões voa-se lado a lado. E os turistas vão desembarcar, claro. Covid free, não esqueçam. O que são mil e tal mortos? A Grécia, menos mortos e infetados, acolheu já um avião do Qatar (a Qatar Airways nunca parou e o hub de Doha também não, sendo agora o único hub ativo da Ásia) com 12 pessoas com covid lá dentro. E recuou. Imaginem o movimento entre Portugal e o Brasil. Ou Espanha. Não interessa, covid free, enfiem-se dentro dos carros porque os transportes públicos são perigosos, e venham trabalhar. Em agosto, podemos ter Champions. E estamos em saldos.
O turismo vai ser repensado? Não. Podemos continuar a depender do turismo low cost e que consome escassos recursos naturais? Não. É assim a vida, a nossa vocação não é inventar, é servir.
Depois de tantos meses de sacrifícios e privações, regressar à normalidade significa o quê? Regressar à normal normalidade de ver Lisboa histórica convertida num parque temático onde não existia uma casa para arrendar e os alojamentos locais se tornaram, com a famosa hospitalidade, o único modelo de negócio? Ouvir as rodinhas no empedrado, esbarrar nos tuk tuks e ouvir os aviões aterrar e descolar da Portela de dois em dois minutos? Abrir as portas de par em par a todos os estrangeiros que queiram fugir de países infetados? A Tailândia, que depende mais do turismo do que nós, não abrirá à Europa e aos Estados Unidos antes do último trimestre, para acautelar novos surtos, e nós falamos de estabelecer corredores bilaterais com o infetadíssimo Reino Unido, que ultrapassou os 50 mil mortos. Aproveitando o facto de a Espanha exigir quarentena e que baixe o britânico número de mortos e infetados. Corredores bilaterais significam apenas que os ingleses desembarcam quando e como querem em Portugal, sem serem maçados pela vigilância. E nós desembarcaremos no Reino Unido? Não, obrigado, podem ficar com as praias. Ninguém por aqui passa férias em Margate ou Blackpool. E, se vier o ‘Brexit’, cada vez mais hard devido à incompetência épica de Boris e amigos, abriremos corredores nos aeroportos, para não serem maçados com a fila dos não europeus. Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser. É este o interesse da pátria. Temos o Algarve à disposição de Vexas. E damos a água para o golfe.
Apreciar-se-ia um plano económico de um Governo que respeitasse o ambiente, diversificasse do turismo para outras formas de criação de riqueza e de investimento, pusesse um travão no desenvolvimentismo sem regras e sem gosto, preservasse regiões do Norte e do Alentejo (o Algarve perdeu-se), cuidasse do interior e das zonas costeiras, diminuísse a selvajaria imobiliária e especulativa das capitais e dos capitais e pensasse, por uma vez, não nos estrangeiros mas nos portugueses. Nos que pagam impostos e não nos que não pagam impostos. Usando os fundos europeus não para meia dúzia de compinchas do crony capitalism, ou para empresas e empreendimentos fictícios, para enriquecimento sem causa e para obscuros negócios escorados na banca e aconchegados nos escritórios da advocacia milionária.
Deixemos de vender o país a retalho a quem quer comprar, a angolanos e chineses, e de vender os esmaltes e joias. Portugal tem uma nova geração qualificada e empreendedora que não obedece às regras do passado e ousa arriscar. Está na altura de deixarmos de exportar os cérebros e empreendedores que educámos e qualificámos, os verdadeiros champions, e importarmos turistas baratos e capitalistas infames. De deixarmos de vez a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros e irremediavelmente estraga toda a disciplina e toda a ordem.