(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 21/03/2020)
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Comunicações e opiniões pessoais sobre o dia a dia da política e da sociedade. Partidos, demografia, envelhecimento, sociologia da família e dos costumes, migrações, desigualdades sociais e territoriais.
Serem os idosos os mais vulneráveis não que dizer que sejam eles os principais transmissores da infeção para os outros. Pelo contrário, são os outros, os dos grupos etários mais baixos, quer sejam cuidadores, quer sejam familiares ou amigos que os contaminam nas suas casas, dentro e fora dos lares, nas casas de familiares e, pontualmente, noutros contextos que os contagiam. Parece querer-se criar nos mais velhos o estigma de causa e efeito da epidemia.
Notícias, informações, comentários, opiniões, contradições, conferências de imprensa, mesmo as da DGS, deixam no ar mensagens de ambiguidade aos auditores/recetores de apreensão e proporcionam interpretações erróneas e algo confusas.
Observa-se no constante destaque sobre a incidência do Covid-19 relacionado com os idosos e os lares, parecendo sugerir que são eles os grandes causadores da propagação do vírus e também serem eles os que, em valor numérico e percentual são os mais contaminados quando haverá nas principais capitais portugueses hostels, pensões, alojamento locais e casas alugadas frequentados por imigrantes e outro tipo de pessoas que são potencias focos da epidemia.
Basta comparar os números oficiais dos infetados que tem vindo a aumentar diariamente independentemente do grupo etário; basta consultar os dados e os gráficos diários divulgados pela DGS e fazer as contas para saber os grupos mais infetados, para sabermos que a maioria dos infetados não são os idosos. Esses são de facto os mais vulneráveis, os que são contaminados, mas não são os difusores da doença apesar de serem os mais afetados pela mortalidade devido às suas inerentes fraquezas.
Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso do sábado passado um artigo de opinião, com alguma ironia, sobre o sentimento e o estigma que se pode estar a gerar contra e sobre os idosos ao escrever que “O que nos propõem é simples e convém que todos estejam cientes da proposta, para que cada um carregue consigo o fardo da escolha: os que não morreram da doença não querem agora morrer da cura. E morrer da cura é continuar a deixar a economia em coma induzido, sem a trazer de volta à vida. Devagar, por sectores, com vários cuidados recomendados e diversas precauções. E, ao mesmo tempo, libertando a população da prisão domiciliária onde estamos todos encerrados, mas por fases e segundo critérios etários: primeiro, adultos saudáveis, na força da idade laboral; depois, jovens; e, a seguir, crianças. Mais adiante “Porém, há uma excepção, e disso depende o êxito — ou a ousadia — de todo o plano: os velhos devem continuar encerrados, porque representam um perigo sanitário público e uma ameaça à sustentabilidade dos serviços de saúde. Devem, então, ser mantidos longe da vista, afastados de qualquer contacto com os outros, até que haja uma vacina e a sua distribuição seja universal — talvez no Verão do próximo ano, na melhor das hipóteses.” E continua, “Muitos deles, aliás, já cumpriram a sua função, deixando-se abater ao activo, vítimas do vírus ou de outras doenças que, por força do vírus, não foram tratadas ou eles próprios não quiseram tratar. Aqui, como em Espanha, um terço dos mortos da covid ocorreram em lares onde os velhos estavam acantonados e foram apanhados sem defesa, a coberto de uma ilusão de segurança que, de tão frágil, chega a parecer indiferença. Quando um utente infectado num lar é retirado dele, consegue recuperar cá fora e depois é devolvido ao lar onde permanece o foco de infecção, que outra palavra podemos usar que não indiferença?”. (Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 18/04/2020- Escreve segundo o antigo acordo ortográfico)
A ideia de uma espécie de “extermínio” dos idosos pelo isolamento a que muitos deles já estão sujeitos parece crescer impulsionado pelas mensagens veiculadas pelos órgãos de comunicação social e até por órgãos oficiais e oficiosos do Governo muitas vezes mascaradas de medidas de proteção para os salvaguardar da infeção.
Somos invadidos voluntária ou involuntariamente por informações de várias origens: informações provenientes dos nossos próprios sentidos, o que vemos à nossa volta; pela televisão e nos jornais; pelo que ouvimos no café da esquina ou através de outras pessoas que, por défice de esclarecimento, cada um interpreta segundo as suas conveniências, interesses ou posições ideológicas.
Parece estar, assim, a começar a ser produzido na consciência coletiva - criada pelos indivíduos em muitas das suas práticas influenciados pela sociedade em que estão inseridos - a ideia da inutilidade dos idosos (o que também transpareceu numa entrevista que o já senil Ramalho Eanes deu há algumas semanas a um canal de televisão, numa demonstração de altruísmo hipócrita).
Teme-se em todo o mundo uma espécie de incentivo para encarar os idosos como os grandes causadores da proliferação da epidemia e de que a sua fragilidade em relação à doença é um a causadora do mal epidémico. Pode ser uma nova versão, mais drástica, da conhecida frase da “peste grisalha” que o deputado Carlos Peixoto utilizou em 2013.
Alguns pensarão, (mas não o dizem), que a elevada taxa de mortalidade provocada pela epidemia nos idosos irá aliviar os contribuintes do peso dos tratamentos e pensões a pagar pelos Estados. Trata-se de uma espécie de genocídio gerontológico ou gerontocídio que passou a ser socialmente aceite, já que o agente executor, o Covid-19, é algo invisível e incontrolável o que, por isso, o torna tranquilizador das consciências de cada povo e, ao mesmo tempo, socialmente útil por aliviar os problemas sociais e económicos originados pelo envelhecimento das populações.
Como apontamento final, e á margem, podemos pensar que, no passado, o Führer da Alemanha nazi se tivesse uma oportunidade como esta, tê-la-ia ajudado para uma “solução parcial” na questão judaica que ficaria resolvida sem problemas de consciência que, de qualquer modo, nunca teve quando prescreveu a receita da solução final.
NOTA: Conforme se pode verificar pelo gráfico o total dos grupos etários superiores a 60 anos é inferior ao dos grupos etários entre os 20 e os 59 conforme se pode confirmar. Os cálculos foram efetuados a partir dos dados da DGS.
CARACTERIZAÇÃO DEMOGRÁFICA DOS CASOS CONFIRMADOS
Totais agrupados em 21/04/2020 (Dados a partir da DGS)
Grupo etário Total de infetados
0-19 946
20-59 12652
> 59 6881
Fonte: Gráfico construído a partir de dados da DGS em 21/04/2020
Imagem de RTP.PT
(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 21/03/2020)
E que esperar dos ricos, os que podem atravessar esta crise sem problemas? Que esperar da banca que salvámos e que continua a aumentar as comissões? Que esperar do absoluto silêncio desta gente? Gostava de ouvir dizer: eu vou oferecer dinheiro para a compra de material, para a investigação, para ajudar a frente de guerra. Eu tenho um plano para ajudar os outros, os que não têm plano.
Concordo com o estado de emergência. Sei que são detestáveis as medidas de suspensão das liberdade, direitos e garantias, mas esta situação é excecional, e quem nos governa e superintende não tem a unha longa do ditador nem a garra do abutre. Nem temos o excecional sistema antidemocrático, semidemocrático ou democraticamente musculado da Ásia. Não sabemos quanto tempo a pandemia vai durar, não sabemos se vai regressar uma vez controlada e não sabemos quando teremos uma vacina para nos salvar.
A razão para decretar o estado de emergência é simples. E não tem a ver com o facto de as pessoas estarem a desobedecer, a ignorar a distância social ou o isolamento e a quarentena. Estamos na fase positiva, otimista e humorada da crise. Trocamos palavras de encorajamento, memes e mensagens, anedotas, vídeos, notícias falsas e verdadeiras. Estamos na fase do combate. Do choque.
Tal como com o anúncio súbito de uma doença grave, esta fase passará. A última fase é a da aceitação. No meio vêm a ira, a negociação e a depressão. O isolamento prolongado de seres humanos dentro de casas e famílias acabará por provocar estragos. Vamos irritar-nos uns com os outros e com os governantes e não existe escape. Não há entretenimento, arte, futebol, desporto, convívio, conversa de bar. Não há ar livre, a contemplação do céu e do mar, o cheiro da terra e da chuva, o brilho da luz do sol e da lua. A prisão domiciliária, mesmo com saúde, testa a nossa resiliência, e as redes tecnológicas não substituem a vida. O contacto humano extremo, na família, raspa os nervos. A ansiedade também.
No rescaldo da crise do coronavírus, a ser clinicamente debelada, virá a fase da reconstrução depois da destruição planetária. Esta fase necessita de medidas estritas de comportamento. Há que evitar o caos social, a criminalidade, os aproveitadores e todos os que florescem nas ruínas e numa economia de guerra e de mercado negro. A violência da situação ainda não nos atingiu.
Percebi isto com clareza. Que a ira virá. Estou em clausura há dias, interrompida para passear e correr pelo parque, onde reparei que ninguém mantinha a distância social e os turistas se comportavam como turistas, com as selfies do costume. A esplanada regurgitava. Os jovens bebiam cerveja na relva e contavam anedotas sobre o vírus, a centímetros uns dos outros, contentes das súbitas férias. Isto irritou-me.
Em casa, fui tratar das plantas, arrancar ervas daninhas, regar a lavanda, cortar as flores mortas do inverno. O silêncio de sepulcro foi interrompido por uma viola clássica. Uma melodia de intensa beleza, que ecoava nos pátios e iluminava o dia gelado. Depois das imagens de Nápoles e Roma a cantar à varanda, pensei que a natureza humana se redime a buscar beleza onde a pode encontrar. Até ao homem do Black & Decker. Um som estrídulo veio cortar o ar como uma faca mal afiada. O tipo do bricolage. Todos conhecemos este tipo de coca-bichinhos, assombra o Leroy Merlin, o IKEA e o AKI por distração, passa os fins de semana nos arranjos, conserta coisas por desporto e invade os vizinhos e os domingos com o ruído da broca infatigável. Do prego preciso. Da serra elétrica e da ferramenta das porcas e parafusos. O homem do Black & Decker nunca descansa e por vezes completa a tarefa com um relato de futebol. A música, envergonhada, calou-se e nunca mais voltou.
Leitores, desejei bater no homem do Black & Decker. Podia ter esperado um pouco, ter-se sentado a apreciar a melodia que nos era oferecida como um prémio na prisão. Mais tarde, na mercearia do bairro, gritei com um homem que passou à frente de toda a gente, pessoas mais velhas com máscaras, e começou aos berros a fazer perguntas em cima de mim. Foi-se embora. Estou a ficar irritada.
No fim de semana passado, fui recebendo mensagens de vários médicos, alguns do Porto, outros de Lisboa, uns destacados para a frente de guerra, outros à espera de serem destacados, uns já separados das famílias, outros em contacto com médicos italianos que lhes enviavam notícias do centro do terror. E percebi que os médicos estavam nervosos e irritados. Porque não tinham proteção e ninguém tinha pensado nisso a tempo e horas, porque se estavam a infetar, porque se iriam infetar juntamente com os trabalhadores e técnicos de saúde, porque eles são os nossos soldados e se não os tratarmos bem eles vão morrer e primeiro do que nós. O que mais os irritava era o facto de as medidas serem tardias e as pessoas não acatarem as regras. Cada português que desobedece está a pôr-nos em risco de vida, somos a carne para canhão, diziam.
Os internos em estágio foram chamados, os mesmos que a senhora ministra queria pôr a trabalhar de graça, como se fossem missionários em África. A relação dos médicos com a ministra não é boa nem de confiança, é o mínimo que se pode dizer. O stresse no meio clínico era evidente, e a raiva fustigava gente que costuma manter a calma olímpica. Os do parque, entretidos nas anedotas e cervejas, nunca pensam nos outros. Nos que estão em contacto com doentes infetados e nem proteção têm. Esta falha, ou a falta de testes, ou a infeção do Hospital de Santa Maria por incúria, a infeção de tantos médicos logo no princípio são sinais de incompetência. Querem ir para um contentor?, gritava um médico.
E que esperar dos ricos, os que podem atravessar esta crise sem problemas? Que esperar da banca que salvámos e que continua a aumentar as comissões? Que esperar do absoluto silêncio desta gente? Gostava de ouvir dizer: eu vou oferecer dinheiro para a compra de material, para a investigação, para ajudar a frente de guerra. Eu tenho um plano para ajudar os outros, os que não têm plano.
Um amigo bem abastado e abastecido contou-me que amigos dele fugiram para o Brasil e os trópicos, em aviões e jatos privados. Abandonaram o barco. Eu mesma ouvi um grupo de brasileiros ricos no restaurante do topo do El Corte Inglés a beberem vinho, em cima uns dos outros, a rirem às gargalhadas e a dizerem que no dia seguinte marchavam de avião para o Brasil e “prà ilha”. Essa Europa já era. Apeteceu-me metê-los de quarentena num contentor, ao frio. Vamos ficar irritados. Se vamos.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.