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Comunicações e opiniões pessoais sobre o dia a dia da política e da sociedade. Partidos, demografia, envelhecimento, sociologia da família e dos costumes, migrações, desigualdades sociais e territoriais.
Nestes dias de festejos dos santos populares a política e a crise são relegadas para segundo plano e o povo centra-se nas sardinhadas, nos bailaricos e nas marchas populares de Lisboa, cada uma representando o seu bairro. Desfilam pela Avenida da Liberdade mostrando os seus dotes de marchantes, colorindo o cinzento de uma crise que nos impuseram, com os seus figurinos, cenografia, coreografia, letra e musicalidade compostas especialmente para a ocasião.
O Presidente da Câmara de Lisboa e a sua comitiva não poderiam faltar na tribuna como manda a tradição, cujo preço foi vinte beijinhos e vinte abraços das madrinhas e dos padrinhos das marchas.
Alfama foi a ganhadora deste ano. No jardim da Praça Paiva Couceiro as réstias do bailarico ficavam-se pela desilusão da perda de um lugar cimeiro para a marcha do Alto do Pina.
Manhã cedo no dia de Santo António, feriado municipal com as ruas ainda pouco movimentadas alguns dos bairros populares expõem à vista o rescaldo de uma noite de folia. Comentários soltos de passantes verbalizam para os vizinhos ou companheiro de passeio pela calçada desgastada pelo tempo o acontecimento do dia anterior. Ao telemóvel ouve-se alguém dizer:
- Nós estávamos mesmo à frente e não a vimos na marcha!… Só se estava lá mais para trás… mas claro que devia lá estar!
As marchas tinham sido o tema da noite anterior e continuavam a ser o tema do dia.
Mais adiante, já na Avenida General Roçadas, uma senhora pequenota parada à frente de um lugar de frutas e hortaliças segurava três minúsculos cães presos por uma trela comum e abespinhava-se com um deles:
- Tá quieta Maria!
Tudo está em mudança! Os cães passaram a ter nome de gente e a gente passou a ter nome de cão. Tudo em nome da evolução.
No Largo da Graça, um quiosque ambulante, àquela hora fechado, e um balcão improvisado disfarçado a toda a volta com caniços, eram os únicos vestígios do arraial da noite anterior. Gente acomodada nos poucos bancos de jardim, gastos pelo sentar da velhice, recordava a mocidade em que ainda pulavam e bebiam até de madrugada festejando o santo padroeiro.
Na Rua da Verónica, lá se encontra ainda residente o velho Liceu Gil Vicente, agora Escola Secundária requalificada. Termo pomposo que atribuíram às obras que aprimoraram o rosto e curaram as entranhas.
Quase frente ao Liceu, lá estava ainda o prédio que albergou, em tempo, os Emissores Associados de Lisboa, Rádio Graça, Clube Radiofónico de Portugal, Rádio Peninsular e Rádio Voz de Lisboa, que a Revolução dos Cravos calou para sempre.
Ao longo da suave descida copos de plástico deitados pelo chão eram os vestígios das cervejas e vinho consumidos na noite anterior. Um trabalhador camarário da limpeza varria pausadamente aqueles e outros vestígios. Não teve feriado. A limpeza dos bairros assim o impunha. Contentores de resíduos domésticos transbordando ali estavam, para mostrar que os carros de recolha não tinham passado, pois os festejos a isso obrigaram.
A noite de Santo António é para todos, pois então! Se a noite foi para todos o mesmo não se pode dizer do feriado. O aprimorar da cidade não pode esperar e alguns carros de recolha do lixo saíram para as ruas, embora tardiamente, com os seus trabalhadores de apoio limpando e carregando a mixórdia nauseabunda.
Assadores de sardinhas ainda mornos jaziam na beira dos passeios, onde algumas mesas e cadeiras de esplanada, posicionadas em locais pouco comuns, começam novamente a alinhar-se para clientes que viessem. Nestas alturas a vigilância camarária fecha os olhos.
Ao desembocar no Campo das Flores, local de realização da Feira da Ladra, são raros os indícios. O único restaurante ali existente encontra-se fechado e cansado da noite anterior.
Ao fundo da Rua Voz do Operário, no início da Calçada de São Vicente, fazem-se os preparativos para as próximas sardinhadas com balcões e mesas improvisados na rua que se encontra engalanada com festões próprios dos festejos populares.
A subida da Rua Voz do Operário não é fácil mas nem a inclinação da rua impediu a realização de bailaricos de rua onde se encontra um coreto improvisado, a que deram o nome de “Beco de Lisboa”, encarrapitado em quatro estacas cuja parte inferior possibilitava o acesso a um portão que dava para um beco. Mais acima, mesmo frente à porta da escola da Associação Voz do Operário, um pequeno carro elétrico antigo da Carreira 28 foi ali colocado e transformado em bar.
Esta calçada também pejada de copos de plástico, acumulados nas bermas dos passeios, fez supor o que terá sido a noite do arraial. Com estes ou outros pensamentos, o que restava da subida daquela calçada, novamente até ao Largo da Graça foi menos penoso. Os ensimesmados que se encontravam sentados nos escassos bancos eram os mesmos da primeira incursão.
Pela Rua da Graça um grupo trocava impressões sobre alguém que teria participado nas marchas da noite anterior: “Via-se nitidamente na televisão”, dizia um. Um outro perguntava: “Viste como ele se abanava todo desconchavado?”. “Pois, estava muito bem!.”.
Chega-se à Rua Maria Andrade que nesta altura se encontra toda esventrada por escavadoras que lhe retiram as décadas de piso de paralelepípedos graníticos que rodeiam os railes dos elétricos da extensa carreira 28. É época de eleições autárquicas, há que fazer e mostrar obra mesmo em tempo de crise e de contenção. Apenas para alguns.
piso de paralelepípedos graníticos que rodeiam os railes dos elétricos da extensa carreira 28. É época de eleições autárquicas, há que fazer e mostrar obra mesmo em tempo de crise e de contenção. Apenas para alguns.A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.