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O Governo da náusea I

por Manuel_AR, em 29.05.13

A Náusea é um romance escrito por Jean Paul Sartre, romancista e filósofo, cuja leitura esteve muito em voga nos anos sessenta, altura em que se discutia a essência do existencialismo. Para quem não conheça vou fazer uma síntese do seu conteúdo, sem qualquer intuito filosófico, para que se possa entender melhor o que irá ser escrito a seguir.

O protagonista Antoine Roquetin é um historiador que se fixa numa cidade portuária virtual, Bouville, em França onde inicia a escrita de um livro que não é mais do que um diário. Como se encontra na solidão começa a refletir sobre o sentido da existência e do quanto pode ser vazia e sem significado. Quando Roquetin se depara com a realidade que o rodeia sente náuseas por acreditar que essa realidade não tem qualquer base de sustentação, portanto, desprovida de qualquer sentido. Tenta então perceber a razão de ser daquele sentimento de repugnância que premeia o seu dia-a-dia em relação a tudo o que o rodeia devido às circunstâncias derivadas da falta de sentido a respeito da sua existência.

Vejamos então onde é que tudo isto se insere no nosso quotidiano político atual. Em primeiro lugar é a forma de comunicação do Governo que revela falta de respeito para com os cidadãos. As mentiras e os embustes são constantes na tentativa de lançar para a comunicação social a informação de que vão ser tomadas medidas que lançam na sociedade intranquilidade para depois recuar ou transformar essas medidas noutras mais brandas que geram uma impressão de alívio do tipo “do mal, o menos”, característica muito peculiar dos portugueses, para mais tarde avançar como outras mais gravosas. Em segundo lugar a utilização de um léxico enganador como por exemplo o empobrecimento que agora se chama ajustamento, os trabalhadores chamam-se colaboradores, o roubo aos depósitos dos cidadãos nos bancos chama-se transformação de créditos credores em ações do próprio banco, despedimento é requalificação, cortes nos salários e pensões são poupança. Trata-se em alguns casos de uma apropriação eufemística[i] da linguagem. Noutros casos os trabalhadores passaram a ser, na terminologia económica e financeira, mão-de-obra, custo, recursos. As pessoas passam a ser tratadas como objetos. A teoria económica marxista, coisa que a direita rejeita profunda e convictamente, refere que o capital (hoje investidor) considerava o trabalhador como uma mercadoria. Então em que ficamos quanto a conceitos no que se refere ao trabalho? Será apenas uma questão de terminologia?

Tudo isto nos conduz a uma analogia com a angústia sentida pelo protagonista da Náusea ao depararmo-nos também com uma realidade que nos rodeia e da qual sentimos náuseas. Náuseas de um governo, náuseas de uma ideologia e política neoliberal insensível que têm uma base de sustentação e um objetivo destruidor de uma sociedade cujo sentido não se altera e tem sido muito bem definido pelo Governo. Percebe-se então a razão de ser daquele sentimento de angústia e repugnância que acompanha o nosso dia-a-dia em relação a tudo o que nos rodeia. Angústia do desemprego, angústia da perda de reformas, angústia sobre como alimentar os filhos, angústia sobre como pagar rendas de habitação que aumentam sem olhar a meios, angústia da ameaça do empobrecimento, angústia pelo enriquecimento imediato de alguns à custa do empobrecimento dos mais frágeis, angústia pela impotência de lutar contra um estado de coisas que a larga maioria não criou, resignação e acomodação angustiadas, etc., etc.. Enfim, como uma sociedade é constituída por pessoas que existem na realidade e não apenas em números, cada um delas terá as suas angústias próprias cujo somatório corresponderá à angústia coletiva nauseante a que este Governo conduziu Portugal.



[i] Dizer de uma forma suave uma ideia ou realidade desagradável.

 

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publicado às 23:53


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