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Porque vale a pena ler

por Manuel_AR, em 22.03.20

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Imagem de RTP.PT

Querem ir para um contentor?

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 21/03/2020)

E que esperar dos ricos, os que podem atravessar esta crise sem problemas? Que esperar da banca que salvámos e que continua a aumentar as comissões? Que esperar do absoluto silêncio desta gente? Gostava de ouvir dizer: eu vou oferecer dinheiro para a compra de material, para a investigação, para ajudar a frente de guerra. Eu tenho um plano para ajudar os outros, os que não têm plano.

Concordo com o estado de emergência. Sei que são detestáveis as medidas de suspensão das liberdade, direitos e garantias, mas esta situação é excecional, e quem nos governa e superintende não tem a unha longa do ditador nem a garra do abutre. Nem temos o excecional sistema antidemocrático, semidemocrático ou democraticamente musculado da Ásia. Não sabemos quanto tempo a pandemia vai durar, não sabemos se vai regressar uma vez controlada e não sabemos quando teremos uma vacina para nos salvar.

 

A razão para decretar o estado de emergência é simples. E não tem a ver com o facto de as pessoas estarem a desobedecer, a ignorar a distância social ou o isolamento e a quarentena. Estamos na fase positiva, otimista e humorada da crise. Trocamos palavras de encorajamento, memes e mensagens, anedotas, vídeos, notícias falsas e verdadeiras. Estamos na fase do combate. Do choque.

Tal como com o anúncio súbito de uma doença grave, esta fase passará. A última fase é a da aceitação. No meio vêm a ira, a negociação e a depressão. O isolamento prolongado de seres humanos dentro de casas e famílias acabará por provocar estragos. Vamos irritar-nos uns com os outros e com os governantes e não existe escape. Não há entretenimento, arte, futebol, desporto, convívio, conversa de bar. Não há ar livre, a contemplação do céu e do mar, o cheiro da terra e da chuva, o brilho da luz do sol e da lua. A prisão domiciliária, mesmo com saúde, testa a nossa resiliência, e as redes tecnológicas não substituem a vida. O contacto humano extremo, na família, raspa os nervos. A ansiedade também.

No rescaldo da crise do coronavírus, a ser clinicamente debelada, virá a fase da reconstrução depois da destruição planetária. Esta fase necessita de medidas estritas de comportamento. Há que evitar o caos social, a criminalidade, os aproveitadores e todos os que florescem nas ruínas e numa economia de guerra e de mercado negro. A violência da situação ainda não nos atingiu.

Percebi isto com clareza. Que a ira virá. Estou em clausura há dias, interrompida para passear e correr pelo parque, onde reparei que ninguém mantinha a distância social e os turistas se comportavam como turistas, com as selfies do costume. A esplanada regurgitava. Os jovens bebiam cerveja na relva e contavam anedotas sobre o vírus, a centímetros uns dos outros, contentes das súbitas férias. Isto irritou-me.

Em casa, fui tratar das plantas, arrancar ervas daninhas, regar a lavanda, cortar as flores mortas do inverno. O silêncio de sepulcro foi interrompido por uma viola clássica. Uma melodia de intensa beleza, que ecoava nos pátios e iluminava o dia gelado. Depois das imagens de Nápoles e Roma a cantar à varanda, pensei que a natureza humana se redime a buscar beleza onde a pode encontrar. Até ao homem do Black & Decker. Um som estrídulo veio cortar o ar como uma faca mal afiada. O tipo do bricolage. Todos conhecemos este tipo de coca-bichinhos, assombra o Leroy Merlin, o IKEA e o AKI por distração, passa os fins de semana nos arranjos, conserta coisas por desporto e invade os vizinhos e os domingos com o ruído da broca infatigável. Do prego preciso. Da serra elétrica e da ferramenta das porcas e parafusos. O homem do Black & Decker nunca descansa e por vezes completa a tarefa com um relato de futebol. A música, envergonhada, calou-se e nunca mais voltou.

Leitores, desejei bater no homem do Black & Decker. Podia ter esperado um pouco, ter-se sentado a apreciar a melodia que nos era oferecida como um prémio na prisão. Mais tarde, na mercearia do bairro, gritei com um homem que passou à frente de toda a gente, pessoas mais velhas com máscaras, e começou aos berros a fazer perguntas em cima de mim. Foi-se embora. Estou a ficar irritada.

No fim de semana passado, fui recebendo mensagens de vários médicos, alguns do Porto, outros de Lisboa, uns destacados para a frente de guerra, outros à espera de serem destacados, uns já separados das famílias, outros em contacto com médicos italianos que lhes enviavam notícias do centro do terror. E percebi que os médicos estavam nervosos e irritados. Porque não tinham proteção e ninguém tinha pensado nisso a tempo e horas, porque se estavam a infetar, porque se iriam infetar juntamente com os trabalhadores e técnicos de saúde, porque eles são os nossos soldados e se não os tratarmos bem eles vão morrer e primeiro do que nós. O que mais os irritava era o facto de as medidas serem tardias e as pessoas não acatarem as regras. Cada português que desobedece está a pôr-nos em risco de vida, somos a carne para canhão, diziam.

Os internos em estágio foram chamados, os mesmos que a senhora ministra queria pôr a trabalhar de graça, como se fossem missionários em África. A relação dos médicos com a ministra não é boa nem de confiança, é o mínimo que se pode dizer. O stresse no meio clínico era evidente, e a raiva fustigava gente que costuma manter a calma olímpica. Os do parque, entretidos nas anedotas e cervejas, nunca pensam nos outros. Nos que estão em contacto com doentes infetados e nem proteção têm. Esta falha, ou a falta de testes, ou a infeção do Hospital de Santa Maria por incúria, a infeção de tantos médicos logo no princípio são sinais de incompetência. Querem ir para um contentor?, gritava um médico.

E que esperar dos ricos, os que podem atravessar esta crise sem problemas? Que esperar da banca que salvámos e que continua a aumentar as comissões? Que esperar do absoluto silêncio desta gente? Gostava de ouvir dizer: eu vou oferecer dinheiro para a compra de material, para a investigação, para ajudar a frente de guerra. Eu tenho um plano para ajudar os outros, os que não têm plano.

Um amigo bem abastado e abastecido contou-me que amigos dele fugiram para o Brasil e os trópicos, em aviões e jatos privados. Abandonaram o barco. Eu mesma ouvi um grupo de brasileiros ricos no restaurante do topo do El Corte Inglés a beberem vinho, em cima uns dos outros, a rirem às gargalhadas e a dizerem que no dia seguinte marchavam de avião para o Brasil e “prà ilha”. Essa Europa já era. Apeteceu-me metê-los de quarentena num contentor, ao frio. Vamos ficar irritados. Se vamos.

 

 

 

 

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publicado às 18:02

Processos de difusão espacial de inovações e de surtos epidémicos

Em Geografia Humana o termo difusão refere-se à disseminação de um lugar para outro de pessoas, bens

por Manuel_AR, em 06.03.20

Difusão_fig1.png

Fonte: London School of Hygiene & Tropical Medicine; COVID Tracker. 5 Março 2020

Figura 1

O Homem e a sua influência situam-se no contexto do espaço e do tempo e este facto tem uma riqueza intelectual e conceptual que faz parte de um dos mais fascinantes campos da geografia humana. Foi por isso que durante a minha licenciatura em Geografia Humana na especialidade de Planeamento Regional e Local me entusiasmei pelos estudos na área da difusão espacial.

Interessado pela evolução da recente epidemia do Coronovirus, COVID-19, que se tem difundido a partir da China fui rever alguns temas sobre esta matéria em que me debrucei para mostrar o processo e os modos pelos quais doenças epidemiológicas podem ser transmitidas. Este texto revisto e atualizado não trata especificamente da difusão de uma doença epidemiológica, o que sairia fora do âmbito do meu conhecimento, mas, sobretudo, dos processos de difusão em geral de ideias, inovações e doenças contagiantes e o modo como se disseminam no espaço geográfico.  

Bases para um estudo sobre difusão espacial.

Em Geografia Humana o termo difusão refere-se à disseminação de um lugar para outro de pessoas, bens, ideias, práticas culturais, doenças, tecnologia e outros fatores. Esse tipo de propagação é conhecido como difusão espacial. O homem, o espaço e o tempo são as áreas da difusão que se ocupa dos problemas da dinâmica espacial.

O mais notável esforço inicial para os modelos de difusão espacial pertenceu a Hägerstrand, geógrafo sueco, professor de geografia na Universidade de Lund, conhecido pelo seu trabalho nesta área. Hägerstrand desenvolveu modelos probabilísticos com técnicas estatísticas para simular como é que um processo de difusão progride ao longo do espaço e do tempo, e ilustra como a disseminação de um fenómeno geográfico pode ser representado quantitativamente. Não irei abordar o aspeto estatístico porque envolveria modelos estatísticos que caem fora do pretendido.

Quando consideramos a influência exercida pelo homem no contexto do espaço e do tempo não podemos perder de vista as interações que condicionam explicitamente, no sentido meramente estático, as suas atividades dentro das dinâmicas e dos padrões espaciais dos processos de difusão que atuam no espaço e ao longo do tempo. Os paradigmas do homem sobre o espaço geográfico através do tempo é algo fascinante de ser analisado e estudado. Mas, afinal qual é o objeto de estudo da difusão espacial?

Conceitos básicos.

Para iniciar e ao debruçarmo-nos num determinado campo de estudo precisamos de adquirir um corpo de conceitos, inicialmente simples, a partir dos quais podemos construir estruturas mais complicadas. Partimos então de princípios óbvios: primeiro, qualquer coisa no sentido lado que se mova pelo espaço geográfico é transportada ou levada de algum modo; segundo, a percentagem das coisas que se movem no espaço são influenciadas por outras coisas que a causam. Assim, quando começamos a pensar nos vários tipos de difusão espacial, devemos considerar o quê e quem se desloca, e o que é levado e, ainda, as barreiras que podem dificultar as entradas no processo de difusão. São eles os transportadores ou portadores de algo que vão desde uma ideia, uma inovação, uma migração, quaisquer que sejam, até à disseminação de uma qualquer doença epidemiológica.

Quando se pensa em transportadores o que nos vem logo à ideia é o transporte de mercadorias e o movimento de pessoas em todos os espaços geograficamente habitados e frequentados através dos diversos meios de transporte, assim como os seus movimentos, seja nos espaços das grandes metrópoles, seja nas pequenas cidades, vila, aldeias e espaços rurais.

As pessoas são suscetíveis a aceitar certas ideias e inovações e ser resistentes a outras. Uma vez que um indivíduo adere a uma ideia, ele pode, após um período de tempo mais ou menos prolongado passá-las para outras.

Como de processa então o fenómeno da difusão espacial?

Difusão_fig1a.png

Figura 1a Difusão por expansão (Adaptação a partir de Peter Gould)

 

 

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publicado às 18:20


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