Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Comunicações e opiniões pessoais sobre o dia a dia da política e da sociedade. Partidos, demografia, envelhecimento, sociologia da família e dos costumes, migrações, desigualdades sociais e territoriais.
Para o fim do ano abrandemos com a política com um conto de uma autora brasileira, Renata Shermann, que tomei a liberdade de transcrever para o português de Portugal. Descontraiam e divirtam-se com o conto se for caso disso, e tenham uma boa passagem para 2020 e que seja um ANO NOVO MUITO FELIZ e PRÓSPERO.
Lara apagou do seu email o convite para a festa de sexta. Sentiu um frio na barriga, como se estivesse fazendo algo errado, mas não estava. Sabia que não estava. Tirou o pedaço de papel do bolso como se fosse um amuleto e o analisou como se nunca o tivesse visto antes:
No ano seguinte tudo iria mudar. Ela precisava que mudasse. Ela iria assegurar que mudasse. Afinal, ela tinha um plano! Retirou outra lista do bolso: o plano. Faltava muito para preparar, mas ela ia conseguir. Ela estava certa de não ir à festa.
O primeiro item da lista: Passar o réveillon num lugar mágico.
Tinha que ser numa praia, vários items da sua lista exigiam a presença do mar. Pegou no telefone para fazer um reserva e viu que tinha novas mensagens no Whatsapp.
Fechada casa na serra!
Já comprei cerveja
Lara, não acredito que tu não vais!
Não respondeu. Precisava de achar um lugar mágico na praia. Ligou para alguns hotéis e descobriu o pacote de fim de ano, estava bem mais caro do que tinha planeado. Ah, que se lixe! É por uma boa causa! Tirou algum dinheiro da sua singela poupança e fez a reserva.
Primeiro item? Check!
15 dias antes do 31 de dezembro 10 dias antes de viajar, passou a hora do almoço atrás de uma cuequinha multicolorida: vermelho para paixão, rosa para amor, amarelo para dinheiro, azul para saúde, verde para alegria e branco para paz. Ela queria tudo. Procurou por várias lojas, não encontrou, chegou atrasada ao trabalho. Durante a tarde pesquisou na net a tal cuequinha revolucionária mas acabou por imprimir um molde de corte e costura de lingerie. Saiu mais cedo para comprar tecido.
Segundo item? Quase check.
No dia D-14, foi atrás de uma roupa branca. Queria uma que emagrecesse, fosse sexy, não aparentasse que ela se tinha esforçado muito, fosse chique, mas com ar de praia. A hora do almoço não foi suficiente, ligou para o escritório dizendo que não estava a sentir-se bem. Faltavam 13 dias. Foi a uma costureira amiga da sua mãe e implorou que ela copiasse um vestido que ela tinha comprado em azul - não tinha branco, mas era lindo!!! - em branco. Não dava. Muito em cima da hora.
As suas costureiras assistentes iam ter de fazer horas extras. Sem problemas, ela pagava. Vestido azul + tecido + costureira tinham saído o triplo do que esperava gastar. Mas, era importante....
No dia seguinte, comprou um livro online sobre mitos e lendas do candomblé. Se ela ia dar um presente para Iemanjá, teria de ser “O presente”. Passou o dia fingindo-se compenetrada enquanto lia sobre a rainha do mar. Comprou todos os presentes que ela gostava: colares imita -o de pérolas, brincos prateados, pulseiras em forma de argola prateadas, pentes, escovas para cabelo, perfumes feminino e talco. As [ores compraria lá. Mais um item da lista concluído...
- Lara? Você fez o relatório que eu lhe pedi?
Não tinha feito. Prometeu entregá-lo no dia seguinte.
Agora só faltavam onze dias... Fez o relatório distraída com a receita de um pão de ano novo que se come na Grécia. Dá sorte. E deve ficar ótimo com lentilhas... Não era difícil encontrar os ingredientes! Enviou o relatório a seguir ao almoço e foi atrás da farinha, fermento e sementes.
D-10 era um sábado. Passou o dia a tentar costurar a cuequinha esotérica, perdeu todo o tecido, foi comprar mais, a conta estava negativa, tirou mais dinheiro da poupança, aproveitou e comprou brincos novos para a passagem de ano, fez a prova do vestido - em azul era mais bonito - e depois de mais 4 tentativas a cuequinha ficou pronta. Parou para descansar, olhou para o relógio, 1 da manhã! Tinha perdido a festa da empresa...
O dia seguinte foi dia de cozinhar o pão, comprar champagne - não queria espumante - e de fazer a faxina de fim de ano para receber as boas energias de ano novo.
Faltavam 4 dias para viajar. Nove para o final do ano. Com os preparativos Lara mal tinha dormido no fim de semana. Chegou ao trabalho cansada, ligou o computador, começou a procurar receitas de lentilha e lojas de fogos de artifício quando seu chefe a chamou ao seu gabinete: o relatório estava todo errado. Ouviu uma hora de repreensão sobre responsabilidade, sobre perda de confiança, sobre já não ter a certeza de ser ela era a pessoa certa para o cargo. O seu chefe sairia de férias naquele dia mas ficaria à espera do novo relatório no seu computador.
Lara voltou arrasada para a mesa, ligou o Facebook e viu uma fotografia de Marcos com as malas no carro partindo para a viagem de fim de ano na montanha onde ela não iria. Pensou em como sempre quis passar o fim de ano com Marcos. E isso deu-lhe mais ânimo para seguir o seu plano.
Lentilhas! Escolheu a receita. Fogos de artifício: já sabia onde e qual comprar.
D-7. Como o chefe não estava, Lara não foi trabalhar de manhã para preparar as lentilhas que levaria num tupperware para a praia. À tarde, ligou o computador, abriu o relatório, mas antes deu uma olhadela pelo Instagram: uma fotografia de Marcos, Sónia e Lia a tirar as compras na casa da montanha. Na foto tinha um saco de romãs. Como ela se tinha esquecido das romãs? Olhou para o computador... Ela podia fazer o relatório no dia seguinte.
Romãs? Check! D-6. No trabalho as pessoas despediam-se conforme iam saindo para férias, de retiro, de fugidinha do trabalho. Lara cumprimentava todo mundo e perguntava o que iriam fazer no fim do ano para dar sorte. "Comer 12 passas!" Ela tinha-se esquecido. Acrescentou à lista. "Entrar com o pé direito." Claro... "Colocar moedas no bolso". Ela não tinha bolso.... Saiu a correr, pegou no vestido e pediu para a tia lhe colocar um bolso. "não vai ficar bom..." Não importava.
D-5. Lara nem foi ao escritório. Arrumou as malas, comprou velas, passas, separou moedas, colocou uma panela na mala, embalou bem o champagne, as lentilhas e o pão grego, separou o seu papel de metas e o seu papel com o plano.
D-4. Passou o dia no aeroporto, o voo atrasou, viajou de noite.
D-3. Passou a madrugada em outro aeroporto. Apanhou um táxi, um autocarro, um barco, uma carrinha, chegou ao seu hotel paradisíaco. Faltavam dois dias para o réveillon. Olhou a praia, o seu lugar mágico, pensou em tomar sol, em dar um mergulho, em conhecer o lugar. Mas, ainda precisava fazer o relatório. Ligou o computador. A sua mãe chamou-a pelo Skype. Estava fula da vida porque ela tinha ido viajar sem se despedir. Então chamou o seu pai, uns tios que estavam de passagem, a vizinha que era quase da família. Já era noite. No Facebook, os seus amigos apareciam fazendo churrasco em volta da piscina, Marcos estava abraçado à Sónia. Lara pensou que no próximo ano seria ela.
Levantou-se para rever a lista.
Dia 30. Ligou o computador para escrever o relatório. Marcos estava a beijar a Sónia numa foto no Facebook. Escreveu algumas linhas com ódio. Marcos mudou o status do Facebook: em um relacionamento com Sónia. Fechou o computador com raiva. Saiu do quarto. Foi procurar alguém para fazer uma fogueira no dia seguinte e percorreu a praia em busca do local ideal para a sua noite mágica.
O dia D chegou! Dia 31. O último dia do ano. O dia que mudaria a vida de Lara. E ela estava exausta. E ainda havia tanto para fazer.
Foi comprar flores de Iemanjá, arrumou o barquinho, foi com o homem que ela contratou arrumar a fogueira, discutiu com o gerente do hotel: ali não poderia fazer fogueira. Procurou outro lugar mágico, não era tão bom, mas servia, deu uma gorjeta ao gerente para lhe arranjar taças de champagne - taças? para quantos? - para um. Só para ela. Pediu também para aquecer as lentilhas e o pão grego que já estava meio duro. Faltavam duas horas. Estava saindo para a praia com a mala cheia quando se lembrou das viagens: precisava dar a volta no quarteirão com uma mala vazia. Não havia quarteirão. A mala estava cheia.
Esvaziou tudo, deu um volta correndo no hotel enquanto outros hóspedes se reuniam em volta da piscina, encheu de novo e partiu carregando a mala pesada pela areia com o seu vestido novo, cuequinha colorida e uns brincos velhos porque se tinha esquecido dos que tinha comprado. Organizou o seu canto mágico: fogueira, velas, presente de Iemanjá, passas, romãs, panela, champagne, taça, fogo de artifício. Agora era esperar até... Não tinha relógio.
Tinha deixado o telemóvel no quarto para não ver mais a cara de Marcos. Ao sinal do primeiro fogo de artifício, foi pulando com o pé direito até ao mar comendo as passas, pulou sete ondas comendo romãs, voltou correndo, acendeu o fogo de artifício, comeu uma garfada de lentilhas, mordeu o pão duro, estourou a champagne, gritou Feliz Ano Novo, bateu na panela, colocou o papel com as suas metas no barco para Iemanjá, voltou a correr para o mar, colocou o barco, fez uma oração, voltou para…
Tinha areia nas lentilhas e o champagne tinha caído no chão. Ela estava exausta. Foi dormir. Dormiu durante todo o dia primeiro e noite pegou o avião. Estava morrendo de fome, pediu dois Big Macs, viu mais uma vez a foto de Marcos e de Sónia na piscina, chegou a casa, tentou apanhar um táxi para o trabalho, mas o telemóvel informou que não tinha saldo no cartão, encontrou o seu chefe, ela não tinha feito o relatório.
Moral da história:
Daqui a um ano irá desejar ter começado hoje ou,
Não aposte tudo em superstições...
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.