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Comunicações e opiniões pessoais sobre o dia a dia da política e da sociedade. Partidos, demografia, envelhecimento, sociologia da família e dos costumes, migrações, desigualdades sociais e territoriais.
Artimanhoso, adjetivo constituído por artimanha + manhoso, é aquele que age com artimanha, que utiliza uma forma hábil, e sobretudo engenhosa, de conseguir algo com astúcia levando outros ao engano sobre si e sobre o que pretende. A artimanha é a arte dos fingidores que são os que dissimulam, que querem passar por aquilo que não são, que disfarçam.
Para penetrar nas gretas das fraquezas do outro os artimanhosos utilizam caminhos orientados por via da manipulação dos seus relatos. Podemos falar de tramas, de urdiduras, de fiar relatos, de tecer história.
Sou mais prosaico do que poético, mas, por coincidência, através de pesquisas que efetuei vieram ter à minha mão alguns poemas que nada têm a ver com este tema, mas que me serviram como metáforas para uma caraterização acutilante deste tipo de indivíduos. Um deles é da autoria da poetisa norte-americana Louise Glück, Prémio Nobel da Literatura em 2020, da qual utilizei o poema “O Poder de Circe” publicado na antologia Rosa do Mundo, Poemas Para o Futuro (2001), da Assírio & Alvim, que aqui transcrevo parcialmente:
“Nunca transformei ninguém em porco. / Algumas pessoas são porcos; / faço-os parecerem-se a porcos. /Estou farta do vosso mundo / que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não eram maus; / uma vida indisciplinada / fez-lhes isso. Como porcos, / sob o meu cuidado / e das minhas ajudantes, / tornaram-se mais dóceis.”
Outros versos, do poema “Em Creta” de Sophia de Mello Breyner Andresen, "Antologia", págs. 253, 254 e 255, Círculo de Poesia Moraes Editores, 3ª. edição, 1975 podem servir para o mesmo fim: / Porque pertenço à raça daqueles que / [percorrem o labirinto, / Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.
Fernando Pessoa escreveu um poema intitulado “Autopsicografia” em que, logo na primeira quadra, afirma que “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor…, mas os artimanhosos são fingidores sem sentir dor”.
Os artimanhosos não são poetas, por isso, pertencem ao grupo daqueles que, por labirintos intricados, jamais perdem o fito sobre quem, o quê e como pretendem atacar.
O cinema e a televisão são os meios onde mais se vislumbra o fingimento, onde se faz que tudo pareça verdade ou dela se aproxime. Tal é o caso das novelas televisivas e de programas como os “reality shows” como o Big Brother onde se constroem mundos do faz de conta para parecerem reais. Não através de artimanhas, mas pela construção/representação exagerada da realidade assente na produção de um espetáculo que leve o telespectador a acreditar que, o que vê e ouve é de facto real. Os reality shows mesmo parecendo em tempo real, os intervenientes ao saberem que estão a ser gravados fazem dos seus atos serem reais.
Os telespectadores, face à narrativa ficcional teatralizada, vão-se identificando, ou não, com os personagens nos seus múltiplos atributos. A identificação leva o telespectador a reconhecer-se com personagens interpretadas pelo ator, assumindo um ou mais dos seus atributos distintivos. Pode também projetar-se nas personagens que é o ato pelo qual o indivíduo atribui a outros, (os personagens), os seus próprios sentimentos ou manifesta a sua natureza própria. Assim, em síntese: a identificação é o movimento de fora para dentro e a projeção é o movimento de dentro para fora, (conceitos desenvolvidos pelo filósofo Edgar Morin, “A experiência do cinema”, 2003, p.143-172).
Na vida real é a projeção em mim do “outro” que é alguém que se admira ou de inveja e que se tenta imitar ou superar. Na nossa vida cotidiana privada e social estamos em permanente projeção-identificação desempenhando continuamente um papel, tornando-se, por vezes, em algumas pessoas num processo patológico.
Seja no cinema, seja na televisão, quando identificamos as imagens no ecrã e as associamos à vida real pomos as nossas projeções identificações em ação. A imagens cinematográficas e televisivas em que falta, na prática, uma comprovada realidade, detêm um poder afetivo muito forte, que a identifica como espetáculo dado pelo encanto da imagem que realça a visão das coisas simples e cotidianas. Um filme ou uma telenovela não são os mesmos para dois espectadores. A projeção-identificação é um processo em que sentimentos e obsessões se projetam na imaginação sobre as coisas e seres reais.
Alguém que se admira e que se tenta imitar é uma identificação com o outro e, ao mesmo tempo, o outro é incorporado na personalidade é um anel de transferências recíprocas.
Nos grupos familiares os astuciosos e artimanhosos, através da trica, vão construindo, junto dos que orbitam à sua volta, intrigas para bloquear laços entre parentescos. A manipulação é o ato de tentar influenciar alguém, seja para benefício próprio, seja ou para dito benefício da pessoa que está a ser manipulada, e a arma dos astuciosos.
Quem já passou os olhos pelo clássico “Ilustre Casa de Ramires” de Eça de Queiroz apercebeu-se da arte da artimanha em contexto de sedução quando a personagem Gracinha confeciona ovos queimados, muito do gosto do Fidalgo, para lhe agradar e reconquistar o antigo noivo, e quando da artimanha sedutora da D. Ana Lucena oferece, indiretamente através de uma amiga, um cesto com perfumados pêssegos da Feitosa ao Fidalgo da Torre (pág. 152).
Algumas peças teatrais têm caracterizado a atitude da artimanha. Recordo especialmente Moliére, e também Gil Vicente, no Auto da Barca do Inferno onde o onzeneiro tenta convencer o diabo a deixá-lo regressar a terra em troca de uma recompensa quando regressasse à barca. Entra aqui a personagens da peça, manipuladora e influenciadora fazendo acreditar os outros em algo, pela manipulação e pela influência a acreditar em algo para tomar uma decisão.
O artimanhoso na hipótese de enviar propostas inaceitáveis para uma outra parte, ao agir de forma demorada, artimanhosa, desleal, e de forma obstinada, estará a atuar contrariamente à boa-fé, ao utilizar artimanhas para conseguir os seus fins. Furtivamente consegue fugir através das suas artimanhas e astúcias para se aproveitar do que mais lhe agrade sem que alguém se aperceba das suas verdadeiras intenções.
O que se tem passado nos EUA que culminou ontem com a invasão do Capitólio, por incitação do presidente Trump, é consequência das suas atitudes e pelas artimanhas que ele construiu para induzir o seu eleitorado a sentir-se perdedor sem se aperceber que está a ser por ele manipulado. Depois de ter certeza de que perderia as eleições engendrou um estratagema que levasse a esta consequência criada pela sua artimanha, sem se preocupar com o prejuízo causado ao seu próprio país. Para pessoas como Trump as eleições são desnecessárias. Também ao nível social, empresarial e outros agregados, os artimanhosos tudo fazem para empurrar para fora do seu círculo quem já não satisfaça os seus anseios expectáveis.
Na política uns, e continuo a referir-me aos artimanhosos, procuram a manutenção do poder a todo o custo, outros procuram degenerar a coesão social, outros ainda, procuram destruir a união e harmonia nos grupos de parentesco seus ou de outros, mas todos utilizam os mesmos procedimentos conducentes ao cumprimento de objetivos moralmente pouco saudáveis que resultam em desconfiança nos outros.
No palco do confronto do debate democrático e do antagonismo das ideias e soluções para os problemas, representa-se uma espécie de farsa expressa por atitudes e comportamentos, crenças e ingenuidades onde as artimanhas discursivas são apoiadas por narrativas falsas e adulteradas, altamente ideológicas e interesseiras dos políticos e dos partidos e seus aliados que são exímios em enganar, distorcer e ludibriar quem os escuta para obtenção de benefícios próprios. Nos processos eleitorais as artimanhas típicas inserem-se no discurso ideológico e populista da crítica aos adversários tendo em vista a obtenção do poder a que preço for.
Na política a artimanha pode nem sempre ser criticável nos regimes ditatoriais, como foi o caso do salazarismo em Portugal, o recurso a artimanhas e metáforas necessárias à linguagem literária e noticiosa eram utilizadas para driblar a censura e era prática corrente, até no jornalismo que nada tinha a ver com falsas notícias, era apenas uma forma de comunicar os factos verdadeiros por meias palavras.
Ao nível dos diversos grupos sociais as artimanhas também se evidenciam no palavreado e nas atitudes aparentemente conciliadoras, cujo objetivo é a obtenção de benefícios que, não sendo monetários, se situam na satisfação pessoal, por vezes são motivados por invejas, para superação dum sentimento subconsciente e duma certa inferioridade da própria condição do sujeito, mais aparente do que real, devido ao ambiente em que viveram durante as primeiras fases da vida. Os artimanhosos são dominados pela inveja e servem-se de todos os meios para igualarem ou superarem os que consideram ser seus antagonistas, sejam eles nos grupos de parentesco ou simplesmente de amigos e conhecidos.
O manipulador, quando em situação de privilégio, impulsiona outras personagens do contexto político e social onde se insere a agirem de acordo com os seus objetivos não revelados. A artimanha coexiste nos mais diversos níveis da sociedade: na política, na arte, no trabalho, nas escolas, do futebol, nas relações sociais de bairro e doméstico, nos comentadores televisivos, nos intervenientes em debates, nos que pretendem influenciar a opinião pública, os chamados líderes de opinião, através dos órgãos de comunicação.
A obsessão pela gabarolice de mostrar ser mais dos que os outros manifesta-se também no seio dos grupos de parentesco formais ou informais, lugar onde os artimanhosos agem consciente ou inconscientemente, levando até à separação de pessoas com objetivos egoístas ou até de pequenas invejas. Muitos servem-se do casamento como artimanha para agarrar um elevador social que os possa catapultar e os retire da sua pequenez.
Contudo, é na política onde o fingimento se eleva ao mais alto nível no sentido de convencer os outros fingidores seus opositores. Os líderes na política são tão falsos e artimanhosos que até enganam os que os escolheram em eleições, defraudando-os logo que se encontrem no poder.
Veja-se o caso do que hoje foi notícia de que o PSD resolveu apresentar uma queixa-crime contra o primeiro-ministro, depois de António Costa ter acusado Paulo Rangel, Miguel Poiares Maduro e Ricardo Batista Leite de estarem envolvidos numa campanha para denegrir a imagem externa do país. Ora aqui está um caso de que, aparentemente, um político acusa outros políticos de artimanhas. Nada nos garante a veracidade, ou não, do que terá sido dito por aqueles políticos do PSD. Fazem agora de damas ofendidas para que possam vir a ser notícia, quando o mesmo é por eles feito a outros estão sempre desculpados. Políticos de tanta pequenez nunca se viu, talvez seja por Portugal ter um espaço geográfico também pequenino.
Isto pode não ser o que parece, pode ser apenas uma manobra/artimanha para fazer oposição ao primeiro-ministro e ao Governo. Pode até ser a deformação de uma realidade para justificar ou encontrar argumento para fazer oposição. Se haverá ou não envolvimento em campanha para denegrir a imagem externa do país nunca chegaremos a conhecer a verdade absoluta e mais profunda, apenas os seus indícios, as suas variantes, que podem ser várias, as versões que se engendram e as suas infinitas interpretações.
Finalizo este texto sobre as artimanhas encontradas e inerentes a uma leitura temática, preferencialmente à estrutural, (alcançados através da reconstrução da ordem das ideias de um texto), da “Ópera do Malandro” de Chico Buarque. Embora na peça se pretenda evidenciar os aspetos político-sociais dum tipo de malandro, o transgressor, responsável pela lesão patrimonial e moral de um grupo social mais amplo, a sociedade brasileira do século XX denota, sobretudo, as "artimanhas" utilizadas pelos grupos dominantes política e economicamente para não perderem as conquistas. Podemos associar a esta peça o encontro da astúcia e da sedução como armas para atingir objetivos, não apenas na política, mas também noutros campos sem preconceitos preconizados pelos juízos de valor pessoais e sociais.
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