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Isto está cada vez pior

por Manuel_AR, em 25.02.17

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O pequeno episódio que lhes vou contar não é anedota nem tão pouco é da minha lavra ficcional, que é pouca. Encontro-me algures no interior da Beira Alta num lugarzito muito verde com visibilidade da Serra do Caramulo que os incêndios provocados por mãos incendiárias tornaram numa espécie de montes escalavrados.

Estou rodeado por pequenas parcelas de terras onde se inserem pequenas casa de imitação de mau gosto urbano, outras antigas rurais que, apesar de modernizadas mantiveram a sua traça rural e adequadas ao ambiente. Os quintais à volta são plantados, consoante a época, com as mais diversas culturas para consumo interno. O cultivo é a ocupação onde grande parte da população, já reformada, passa o seu tempo cavando, plantando, tratando, colhendo, numa rotina interminável onde o que varia são apenas as culturas nos pequenos talhões de acordo com as épocas do ano.

População muito conservadora, votante na direita, naquela que a democracia lhes proporcionou mas que se mais à direita houvesse assim votariam.

Voltando à estória que resolvi contar-lhes que se passou numa dessas terras dum nosso vizinho. Homem há muito reformado com algumas limitações de mobilidade mas não tantas que não o coíbem de se passear, lentamente pelo seu pequeno minifúndio. Antigamente era ele e a mulher que amanhavam os talhões para o planto da couve-galega, das alfaces e dos tomates e, na época, o feijão-verde. A modernice, para não ficar atrás de outros levou-o a adotar do Kiwi construindo uma pequena arcada com os ramos desta fruta tropical

Conhecemos a sogra do senhor Augusto na altura em que ele e a sua mulher ainda viviam fora daqui. A D. Benilde gastava horas ao muro junto da sua casita a palrar com a vizinhança que passava e, como as nossas traseiras dão para a casa dela éramos os eleitos para os seus desabafos. Digo palrar porque a sua interminável lengalenga discursiva era tão rápida e ao mesmo tempo tão gaguejante que, para os nossos ouvidos, embora atentos, era mesmo assim impercetível.

O senhor Augusto e a sua mulher tinham vindo de Angola após a descolonização e fixaram-se lá para os lados do entre Leiria e Coimbra onde ele trabalhava numa qualquer indústria instalada naquela região. Nunca soubemos a fazer o quê. Nunca os víamos por aqui, nem aos fins de semana, nem nas férias. A D. Benilde aqui vivia sozinha sem tempo nem paciência para mais do que não fosse plantar umas covitas para a sopa.

Soubemos do falecimento da D. Benilde já com idade avançada quando voltámos aqui num certo verão. Já lá vai uma boa dezena de anos, ou mais. Talvez não fosse coincidência, mas o senhor Augusto e a esposa resolveram vir para a terra da mãe dela e aí construíram uma pequena casa como sendo de arrumos para não terem que pedir licença. A casa tem porta e janelas apenas para o lado de dentro da terra, do lado da ruela é só parede.

Os anos não perdoam e a idade mesmo que não gostemos é inexorável e vai pesando a todos coisa que para o senhor Augusto não era de esperar exceção tendo como consequência terem deixado de cultivar os talhões, mas, mesmo quando as pernas já não podem, há tarefas que têm de ser feitas e, assim, contrata-se outro que o faça. É o caso da poda das vinhas, que rodeiam o muro da terra e que é feita cerca de quatro meses após as vindimas, e a das árvores de fruta, e também a limpeza das ervas daninhas para a terra não ficar a mato.

Foi neste afã da poda das vinhas que volteiam o muro que ouvi a conversa em voz alta do senhor Augusto sentado numa cadeira a conversar ao mesmo tempo que observava a perícia do seu contratado. Diálogo curto mas representativo do pensamento do povo que somos e do qual quem sempre viveu numa grande cidade não se apercebe.

Empoleirado numa espécie de pequeno andaime, o trabalhador e o senhor Augusto sentado olhando para cima, tecia considerações sobre a tarefa e outras coisas mais. Por entre a conversa o senhor Augusto, cavaquista ferranho e fiel votante do PSD, segundo dizia, interpretava ao seu modo o que via e ouvia na televisão sobre a política do país.

- Nunca houve ninguém como o Cavaco, esse sim é que era um político a sério – falava com o seu ar de entendido instruindo o seu interlocutor que acho nem o escutava.

- O país estar a ser governado pela esquerda é um desastre. Qual maioria parlamentar qual quê! Isto precisava era dum Salazar.

A meio da tarde, já o sol de inverno se encaminhava para o ocaso, juntou-se ao grupo um outro parceiro para ajudar ao trabalho. Era o irmão do podador. Indivíduo gordo que trazia vestida uma camisola amarela que vincava uma barriga bem nutrida de tal modo saliente e arredondada que faria inveja a um globo terrestre. Logo que chegou foi inquirido pelos outros dois.

- Então isto é que são horas de chegar? - Perguntou-lhe o irmão em tom pouco amistoso.

- Não queiram saber! – Exclamou. Estive a fazer um trabalhinho, aqui a onze quilómetros, e depois fomos almoçar e atrasei-me um bocado – justificou-se continuando a resenha sobre a causa da tardia chegada.

- Foi um rico almocinho que estava bom e saboroso! – Exclamou o recém-chegado a desoras para aquele biscate.

E, sem deixar que ninguém o interrompesse continuou com o seu protesto de indignação.

- Com aquele almoço tão bom bebi apenas um copinho. Vejam lá! Apenas um copinho! Um só copinho! O almocinho estava-me a saber tão bem!

- Eles andam para aí danados na estrada – vociferou.

O senhor Augusto não lhe deu tempo para mais nada e, com um bramido estridente, grave e indignado lançou para o ar o seu grito de revolta:

HUMM! Isto tá cada vez pior!

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publicado às 18:16


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